quinta-feira, 4 de dezembro de 2008


o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani


índice


capítulo seis
capítulo oito





capítulo sete
o corpo das vozes


o perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro

“A complexidade essencial dos cantos xamanísticos Araweté reside em outro lugar: no agenciamento enunciativo ali estabelecido. A música dos deuses é um solo vocal, mas é, lingüísticamente, um diálogo ou uma polifonia, onde diversos personagens aparecem de diversas maneiras. Saber quem canta, quem diz o que para quem, é o problema básico.” (Viveiros de Castro, 1985:548)

“O movimento infinito é duplo, e não há senão uma dobra de um a outro. É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa. Ou antes, o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser.” (Deleuze-Guattari, 1995:54)


Desde a década de setenta, Viveiros de Castro vem elaborando uma obra de referência nos estudos etnológicos brasileiros. Junto ao antropólogo e etnomusicólogo Anthony Seeger, elabora princípios para uma etnologia regional.
A importância da corporalidade nas sociedades indígenas sulamericanas, que já tinha destaque na obra de Seeger, fornece o eixo para essa etnologia, que tem seus prolongamentos na obra de Viveiros de Castro.
Em seu estudo musicológico junto aos Suyá, Seeger destaca o corpo como campo da socialidade, da circulação de capital simbólico, sem desdobramento objetivo. O corpo fornece o suporte, é o lugar em que circulam “idiomas”. De sua superfície aos seus esquemas motores, o corpo constitui a matriz simbólica da cultura. Essa concepção, fundamental para a definição da antropologia brasileira, traz em seu corpo as marcas dessa herança musicológica.
“A garganta é o ‘instrumento’ principal e determina o som das pessoas. (...) Tratando-se de um grupo Jê, não surpreende tal estética se localizar no corpo e que ele seja usado para discutir o desempenho musical.” (Seeger, 1988:184)

Para a realização desses processos de intervenção no corpo, as sociedades ameríndias dispõem de recursos herdados gerações afora. Tais processos são elaborados no âmbito da socialidade cosmológica que relativiza o grupo diante de outros grupos humanos e não-humanos. A ritualidade, além de fornecer o sistema a partir do qual se pode definir o que se denomina corpo nessa sociedade (cf. Viveiros de Castro, 1987), constitui um vasto conjunto de recursos de abertura e fechamento do corpo.
A partir dos jogos de intensidade que se instauram nos rituais, dividem-se aqui basicamente em ritos de passagem e ritos cotidianos. Os ritos de passagem, por seus ciclos esporádicos, buscam graus de intensidade mais marcantes, enquanto os ritos cotidianos trabalham com os efeitos obtidos pela constância disciplinar do corpo.
A isso, relacionam-se a estrutura desses eventos: os efeitos das vozes e dos gestos no canto-dança, assim como a sonoridade dos instrumentos. O entorpecimento gerado pelo uso incessante do tabaco, especialmente nos ritos de passagem em que se buscam intensidades extraordinárias, serve para intensificar os efeitos de tais práticas. Cantar melhor, limpar a garganta, estabelecer o contato. A fumaça desdobra-se numa vasta simbologia. Da leveza à cura, representa o veículo dos deuses, fio condutor do caminho.
Em sua investigação junto aos Araweté, Viveiros de Castro elabora uma etnografia em que se destacam tais elementos da ritualidade. “O xamã, se é um comedor de fumo e um senhor do aray, é por que isso o capacita a ser um suporte dos Maï, que cantam por sua boca.” (1986:542)

Nesse ponto, articulam-se os elementos cruciais que se busca apropriar de um possível sistema esboçado nessa tese de Viveiros de Castro: corporalidade e regime enunciativo. Esses elementos são apropriados pelo autor das práticas rituais indígenas, constituindo o que define como um dispositivo de compreensão. São essas concepções que permitem esta apropriação da ritualidade guarani.
O ponto alto de sua tese é a interpretação dos cantos xamanísticos do grupo. O vetor dessa leitura é o regime enunciativo que se configura na narrativa desses solos vocais.
A intercomunicação que se estabelece na narrativa entre deuses e mortos em torno do xamã ou do doente em processo de cura, desdobra-se por vezes em uma trama enunciativa complexa caracterizada lingüisticamente como polifonia.
Esse recurso narrativo apropriado pelo texto etnológico, desdobra-se em dimensões distintas. Numa leitura explicativa, visa meramente descrever e explicar a estrutura dos cantos e a atuação do xamã.
No entanto, deixando-se conduzir pelos recursos lingüísticos apropriados pela instância narrativa, evidencia-se a interação enunciativa que constitui o próprio texto, desdobra-se um jogo de vozes entre o narrador-etnólogo e os seus interlocutores.
O distanciamento pressuposto pela análise da estrutura narrativa dos cantos é ilusório, abre-se para outro texto , pois serve justamente para dar voz aos Maï, que, dessa forma, podem ser agenciados pela instância narrativa.
Os Araweté, que se olham com os olhos dos deuses, têm como rito central de sua vida a Maï marakã, “música das divindades”, expressão tanto genitiva quanto possessiva.
Através desse recurso, os Araweté oferecem uma importante contribuição à etnologia brasileira. Sua concepção de alteridade e seus processos de formação da pessoa, apropriados pela etnologia do autor, fornecem, mais que uma categoria nativa, uma complexa epistemologia.
Essa epistemologia articula-se num conjunto de categorias nativas, mas assenta-se principalmente numa concepção narrativa da interação enunciativa. Essa categoria é bastante explorada em sua tese, constituindo a categoria central do modelo nativo aqui explorado pelo autor. Esse jogo de vozes, apresentado como modelo narrativo, simula a ordenação narrativa do próprio texto, abrindo-se num contraposição especular (cf. 1985). Sua articulação com a corporalidade, explorada pelo autor em termos de construção e destruição de corpos, define os princípios do que se seguirá como perspectivismo ameríndio, segundo o qual os pontos de vista estão nos corpos.
O agenciamento enunciativo que caracteriza esses cantos, ao ser apropriado pelo texto relativiza seu eixo narrativo. Ao assimilar o jogo de forças entre o discurso citado e o contexto narrativo, esse recurso incorpora ao texto a opção epistemológica que define a antropologia. O texto é redimensionado ao se constituir numa interpenetração criativa entre os locutores. Esse recurso marca uma recondução na concepção de linguagem do autor.
Ainda que o autor mantenha certa objetividade no texto etnográfico, essa abertura do texto em um jogo de espelhos, jogo de imagens, redimensiona tal objetividade. Objetividade que procede da discursividade antropológica, é ela própria penetrada pela voz do outro. O próprio recurso analítico é a porta de entrada para as outras vozes.
O corpus utilizado não é tomado como objeto, não pode ser tomado como objeto, por se constituir no entre, na interface. Esse entre lugar onde se tece a enunciação tem o poder de circunscrição daquele que fala. Evidencia-se sua situação de fala, sua enunciação.
Ao analisar o caráter polifônico dos cantos Araweté, o autor redimensiona em sua narrativa a abertura polifônica do texto etnológico. Apropria-se do jogo teatral de citações de citações, reflexos de reflexos, ecos de ecos  interminável polifonia onde quem fala é sempre o outro, fala do que fala o Outro.
É nesta dimensão aberta da instância narrativa em que o texto etnológico se reconhece, em que o texto encontra no outro texto seu Outro, é nesta dimensão intertextual que o reducionismo reificante que define a abordagem do corpus, dá lugar à enunciação como processo ininterrupto.
O principal recurso do sistema de conhecimento, da filosofia Araweté encaminha todo o trabalho posterior do autor. Funciona como a chave com que empreende, junto a seu círculo, a sua parcela no debate sobre as possibilidades de contribuição das cosmologias ameríndias à epistemologia ocidental.


polifonia dos corpos

Um ponto que marca especificamente a interface de Viveiros de Castro com a investigação que ora se apresenta, é o de sua reflexão lingüística.
Desde de sua tese, Araweté, os deuses canibais, até sua retomada do perspectivismo há dez anos, observa-se que a linguagem fornece-lhe subsídios estratégicos em sua criação.
Outro ponto, é a apropriação feita pela epistemologia ocidental das cosmologias ameríndias, em que resulta esse discurso etnológico. É a dimensão política desse saber nessas sociedades, reflexo do antropólogo na nossa. Essa questão ocupa grande parte do debate precursor levantado por Pierre Clastres.
Em relação ao perspectivismo fundamentalmente, por sua dimensão dialógica e polifônica, os subsídios lingüísticos fornecem coordenadas certeiras.
Em seu redimensionamento do animismo, centrado na dinâmica da reciprocidade ameríndia, propõe o que denomina de pronomes cosmológicos. Esses pronomes coordenam tais relações entre sujeitos  humanos e não-humanos  que se interconstituem.
O trabalho de tradutor que o etnólogo empreende junto ao saber indígena fornece princípios epistemológicos fundamentais para investigações no campo da aprendizagem.


pronomes cosmológicos e perspectivismo ameríndio


“Se onça urrar, eu falo qual é. Eh, nem carece, não. Se ela esturrar ou miar, mecê logo sabe... Mia sufocado, do fundo da goela, eh, goela é enorme... Heeé... Apê! Mecê tem medo? Tem medo não? Pois vai ter. O mato todo tem medo. Onça é carrasca.”
(Rosa, 1994:840)

Para tanto, propõe examinar o perspectivismo, conduzindo a crítica etnológica da distinção entre Natureza e Cultura, descendente em linha direta da oposição entre natureza e sobrenatureza.
Define o perspectivismo como atributo perceptivo, fundamento teórico e campo de operação do xamanismo. Apoiando-se na etnografia do ver-como animal, descreve o campo intersubjetivo humano-animal, em que dá destaque à construção de corpos via propriedades perceptuais¬  perceptos. Salienta sua importância simbólica sobre a teoria de que o universo é povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas próprias.
Para propor sua concepção de multinaturalismo, inversão ameríndia do multiculturalismo, elabora sua releitura original do animismo. Examina os contrastes entre o naturalismo das cosmogonias ocidentais e o animismo, concepção sociomórfica do cosmos atribuída ao pensamento ameríndio. Recuperando o perspectivismo como corolário etno-epistemológico do animismo, o autor encaminha a uma crítica do etnocentrismo. São introduzidos, então, os pronomes sociológicos.
A consideração do etnocentrismo inicia-se pela hipótese comprovada pelo estruturalismo. Em suas palavras: “A universalidade da distinção cultural entre Natureza e Cultura atestava a universalidade da cultura como natureza do humano. Em suma, a resposta à questão dos investigadores quinhentistas era positiva: os selvagens têm alma.” (1996:124)

Como numa colonização às avessas, o neo-animismo revela que o etnocentrismo atribuído aos ameríndios, deduzido de suas autodesignações, não teria função de fechamento ou isolamento, mas que tais etnônimos conduzem à abertura por cumprirem função pronome coletivo .
Os etnônimos traduzidos por “seres humanos” ou “gente”, se refeririam a um “a gente”, “nós” (que pode designar um “eles”), a um marcador enunciativo, não a um nome. Disso se conclui que: “Dizer então que os animais e espíritos são gente é dizer que são pessoas; é atribuir aos não-humanos as capacidades de intencionalidade consciente e de ‘agência’ que definem a posição do sujeito. Tais capacidades são reificadas na ‘alma’ ou ‘espírito’ de que esses não-humanos são dotados. É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um ponto de vista. As ‘almas’ ameríndias, humanas ou animais, são assim categorias perspectivas, dêiticos cosmológicos cuja análise pede menos uma psicologia animista ou uma ontologia substancialista que uma teoria do signo ou uma pragmática epistemológica.” (1996:126)

Enfim o multinaturalismo. Enquanto o multiculturalismo propõe uma gama de culturas que interpretam uma mesma natureza, o multinaturalismo, uma unidade representativa ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente a uma radical diversidade objetiva.
Para distinguir uma perspectiva de uma representação o autor associa esta ao espírito, enquanto aquela está no corpo. O que determina um ponto de vista animal é sua singularidade afectiva: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário... é ela que permite definir corpo como feixe de afecções e capacidades que é a origem das perpectivas.
Enquanto o pensamento ocidental baseia-se numa descontinuidade metafísica, apoiada numa condição moral, e uma continuidade física, os ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos, a primeira resultando no animismo, a segunda no perspectivismo: o espírito (que não é aqui substância imaterial, mas forma reflexiva) é o que integra; o corpo (que não é a substância material, mas a afecção ativa) é o que diferencia.
O autor conduz à conclusão, retomando neste contexto a concepção de corporalidade que fundamenta sua produção etnológica. Segundo essa concepção os corpos constituem-se como categrias de identidade a partir de regimes alimentares e da decoração corporal.
Reitera sua concepção dos processos de fabricação contínua de corpos como o equivalente de uma Bildung ameríndia, acrescentando que tais operações incidem sobre os corpos como feixes de afecções e sítios de perspectivas.
Para finalizar, convoca o tema da descontinuidade entre vivos e mortos. Sobre essa importante categoria perspectiva, propõe-na como “tu” da série pronominal, em relação ao “eu” reflexivo da cultura (gerador do conceito de alma ou espírito) e ao “ele” impessoal da natureza (marcador da relação com a alteridade somática).


estrutura de outrem
“Enquanto a los verdaderos medicos indígenas  que los hay, y buenos  es ilusión el creer que un traseunte o viajero de ocasión les pueda sacar datos muy importantes o verdaderas revelaciones al respecto del arte de curar. Es cosa sabida que más el curioso insiste y más el índio se retrae; a no ser que, para librar-se del fastídio, éste no obste al fin por largar alguna mentira, caso no muy raro.”
(Bertoni)

O que nos interessa nessa antropologia que coloca a eqüipolaridade como regra do jogo ao conceber seu caráter/princípio relacional, é a noção imanente de problema, o qual não está dado de antemão para o antropólogo, visto que se constitui a partir do campo problemático onde as idéias estão implicadas.
No caso de Viveiros de Castro buscou-se demonstrar essa operação/hipótese/proposição vinculando a noção de perspectivismo ameríndio ao seu surpreendente encontro com a polifonia própria ao regime de interações enunciativas dos cantos araweté. Concebe-se problema como a noção que evidencia o plano de imanência próprio ao texto, desviando, de acordo com Deleuze-Guattari, de noções transcendentes.
“...no outro plano, de imanência ou de consistência, é o próprio princípio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá.” (1997:75)

No caso de Seeger, encaminha-se a questão da aprendizagem. O conceito elaborado não se dá apenas a partir de sua relação com os nativos. A partir da relação com Roseman (não a relação pessoal, atualizada, mas aquela incorporada ao texto, virtual), com a discípula, o educador pode reconduzir o limite de seu ponto de vista, enviando-o mesmo ao limiar de sua percepção. (É interessante que, no texto de 2002, Viveiros de Castro tenha apropriado esse recurso do diálogo docente-discente num ponto central: o que quer dizer levar o que os índios dizem a sério?)
É assim que opera a inversão do sentido da transcrição musical utilizada objetivamente, em relação ao plano de transcendência no qual estamos situando a intersubjetividade, lançando-a no plano da estrutura de outrem, onde esse recurso serve de guia ao devir imperceptível.
Esse entre a que o autor se refere no título traduz justamente o trabalho rizomático da percepção que permite olhar apenas os movimentos, abolindo (ou exercitando essa abolição como estratégia) as instâncias (sujeito, objeto, subjetivação, intersubjetividade) que prendem ao transcendente. Esse entre o gabinete e o campo, nosso entre a opy e a escola, é a potência de liberação do acontecimento.
“A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e, todavia, singular, que libera um puro acontecimento, livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que ocorre.” (2001:228)

Dessa forma, a intersubjetividade como interação enunciativa própria ao plano de transcendência, é tomada aqui visando seu redimensionamento a partir dessa impessoalidade que marca a estrutura/figura de outrem, do mundo sem o outro, ou seja, um mundo no qual as virtualidades não se atualizam. Essa recusa de atualizar os possíveis (expressos pelo pensamento indígena) para realizá-los como virtuais marca a opção por não explicar o mundo de outrem, e sim multiplicar nosso mundo.
Enquanto a intersubjetividade se pauta nas estruturas segmentárias de identificação, a estrutura/figura de outrem se norteia pelas hecceidades, pelos singulares modos de vida resultantes das linhas de fuga.
A redefinição da (inter)subjetividade a partir dessa impessoalidade foi encontrada ao longo da busca da caracterização das hecceidades que se entrevêem nos processos de constituição de perceptualidades típicos da aprendizagem guarani. Considerou-se o corpo concebido de Nietzsche a Deleuze e Viveiros de Castro, o qual não se define pela forma que o determina, nem como uma substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce, e sim por hecceidades, dando-se por relações de movimento e repouso entre moléculas e partículas, poder de afetar e ser afetado.

“...Deleuze cria, fabrica conceitos que rompem com as modalidades dominantes de pensar e representar a subjetividade e que são inseparáveis de novos perceptos (novas maneiras de ver e escutar) e de novos afetos (novas maneiras de sentir). Conceitos como hecceidade, impessoalidade, devir, rostidade, território, rizoma, dobra, linhas moleculares, linhas de fuga. Todos servindo para combater a primazia do verbo ser. Assim, Deleuze, frente a uma idéia de Sujeito essencializado, dotado de uma identidade unitária, privada, estável e fixa, ajuda-nos a pensar num território povoado de singularidades pré-individuais: intensidades, profundidades, movimentos, sujeitos larvares...” (Jardim, 2005)

Encerrar a figura de outrem sob a capa do sujeito equivale a tomar a metamorfose do corpo indígena como metáfora. Nos dois casos toma-se nossas categorias/conceitos para atualizar os possíveis ao invés de multiplicá-lo com esses virtuais que definem a imanência do campo transcendental.
“É justo porque o antropólogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo possível.” (Viveiros de Castro, 2002)

Como se vê, Outrem é a expressão de um mundo possível. Viveiros de Castro ao abordar a questão da equipolência dos discursos alinhados, refere-se ao perigo de neutralização do pensamento indígena, especialmente, quando busca explicá-lo por certos modos de transmissão social de conhecimento. Recusar-se a colocá-lo em termos de crença equivale a pensá-lo como atualização de virtualidades insuspeitas do pensar.
“Quando desenvolvo o mundo exprimido por outrem, é para validá-lo como real e ingressar nele, ou então para desmenti-lo como irreal: a ‘explicação’ introduz, assim, o elemento da crença.” (2002)

A explicação ou atualização desses possíveis expressos pelo pensamento indígena dissiparia aquilo que Deleuze chama de estrutura de Outrem. Trata-se de não explicar, nem interpretar, e sim multiplicar, e experimentar, ou seja, de multiplicar nosso mundo povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões. O autor define, por fim, seu propósito . “Realizar os possíveis nativos como virtualidades é o mesmo que tratar as idéias nativas como conceitos.” (2002)

Pierre Clastres

“Essa área, o Brasil, o planeta, é uma terra só. Porque pra nós não tem essa divisão de São Paulo, Rio de Janeiro... As autoridades usam essa divisão contra o direito das comunidades.” (Tupã Mirim da tekoá Piau, num tom calmo e vigoroso)

Os estudos etnológicos de Clastres têm como um de seus focos a convergência política-linguagem na sociedade Guarani. As belas palavras do xamã. A palavra do chefe. A função da palavra na manutenção desse lugar provisório que é a chefia, em contraste com o Estado e a lei escrita .
Esse problema da fala, do poder da fala, visto que falar é deter o poder de falar, e que o exercício do poder assegura o domínio da palavra, nos rastros da violência legítima, adquire aqui proporções epistemológicas. Daí a tese: “a sociedade primitiva é o lugar da recusa de um poder separado, porque ela própria, e não o chefe é o lugar real do poder” (1978:108). Ao remeter-se à palavra do chefe indígena, o autor problematiza em que medida a etnologia pode reencaminhar seu alinhamento político ao discurso colonialista ou mesmo à epistemologia de tradição ocidental.
O percurso dessa problemática remete ao próprio percurso do autor em sua obra. Essa sensibilidade vivenciada em campo não é referida objetivamente, e sim elaborada como etnografia. Essa etnografia gravada no corpo não se distingue da etnologia, pois instaura um plano de imanência em que a própria corporalidade, via percepção, é material de trabalho. O autor não se propõe a explicar, visto que realiza experimentos com esse entre percepções, esse devir-imperceptível. Tais experimentos conduzem-no à apropriação da noção de sociedades contra-Estado. Assim, o processo que se inicia como influência em sua obra, acaba por conduzi-lo e impulsioná-lo.
Essa apuração da escuta envia Clastres a se afinar, ser atravessado por essas belas palavras agenciadas pelos Guarani, ouvir essa dimensão aberta da palavra, constituída no entre. Percebe isto nos mitos, nas orações e depois nos cantos e apropria-se desse jogo enunciativo para tecer seu discurso, para povoar esse discurso com tais vozes. São inúmeras as referências a essas aberturas em textos cifrados a maneira dos xamãs. Apropriemo-nos delas.

Como eles dizem?
(Deleuze, O enigma e o monstro)

Ao longo dessa obra é nítido como a interpretação da palavra e do mito vão dando lugar às vivências do rito e do corpo. Essas últimas evidenciam-se na sua escritura. Aprende, aos poucos, a ouvir o silêncio Guarani, incorporado em sua escrita.
No início de O arco e o cesto apropria-se desse silêncio para instalar-se no campo onde ecoam os cantos. Esse silêncio envia-o à concepção do canto, marcado pelo valor de seu silêncio, como prática simbólica da socialidade cósmica.
Esse silêncio envia-nos para a floresta noturna em que se ouve, de longe, os prerä Guaiaqui. Palavras poucas, penetradas pela sensibilidade dos co-autores, conduzem ao imperceptível. A música indescritível dissipa, com sua tenuidade, outros regimes passíveis de serem fixados pelo olhar teórico, olhar que se dissolve na audição dos cânticos. “A audição atenta do canto de alguns selvagens nos ensina que em verdade se trata de um canto geral e que nele é despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos.” (1978:88)

Ao invés de Clastres integrar os Guarani, cercando-os por fora, com os pressupostos metodológicos de pesquisa, deixa-se conduzir nesse processo experimental de desintegração, apontando aberturas para o pensamento condicionado pela busca de um sentido fechado.
Clastres traça uma série de incursões pelos jogos enunciativos que atravessam os mitos, as orações e os cantos Guarani. Inicia com sua abordagem dos cantos Guaiaqui como possibilidade de abolição do universo social dos signos e de dissolução do cantor no cosmos; atravessa sua releitura do mito, onde se prolifera um jogo de vozes entre seres mais diversos; e conduz aos profetas na selva e o alcance de seu recurso de agenciamento dos deuses, incorporado em vocativo pelo autor: “Agradar aos deuses, merecer deles as Palavras que abrem o caminho da terra eterna, as Palavras que ensinam aos homens as normas de sua futura existência: tal é entretanto o desejo dos mbya. Que falem, pois, os deuses!” (1978:115)

Agenciando a palavra divina, já integrada ao texto  o autor já divide a autoria com os Guarani pelo menos desde Os profetas da selva quando explicita esse recurso, no entanto, já se nota essa híbridação desde O arco e o cesto, de 1966 , o autor implica-se ao explicar: “Quem fala assim em nome do deus Que mortal destemido se iguala sem tremer aos poderosos do alto? Ele não é doido, entretanto, esse modesto habitante da Terra. É um desses pequenos seres a quem, desde o início dos tempos, Tupã confiou o cuidado de sua própria distração. É um índio guarani. Rico em conhecimento das coisas, ele reflete sobre o destino dos seus, que se denominam a si próprios, com altiva e amarga certeza, os Últimos Homens. Os deuses revelam algumas vezes seus desígnios. E ele, o karaí hábil em ouvi-los e dedicado a dizer a verdade, revela-a aos companheiros.” (1978:119)

Conforme se deixa entrever nas palavras de dona Feliciana Cano, a distração a que o autor se refere é o mborahei, canto-dança: “Eu voltarei para o meu povo para deixar o meu cântico. E quem me obedecer eu levarei, e quem não me obedecer ficarão aqui na Terra disse ao seu irmão. Assim eu sei desta história.” (Mito fundador Guarani narrado por D. Feliciana Cano, in: Garcia, 2000:218)
Acompanham-se as metamorfoses do corpo no próprio texto que, à medida que integra a perceptualidade Guarani, ganha autonomia etnológica.
As experimentações que já integram O arco e cesto, texto de 1966, encaminham ao vislumbre dos profetas da selva, em que o recurso do agenciamento, próprio às ñe’e porã tenonde, belas palavras originais, está incorporado ao texto. Antes de fazer falar os deuses, Clastres detecta o princípio trágico que atravessa essa sabedoria de encaminhar-se para a morte.
Dessa conversão resulta o texto de 1973, Da tortura nas sociedades primitivas. O texto constitui-se de seis breves movimentos que têm o propósito de marcar no corpo, de evidenciar o corpo como o campo de uma socialidade estranha à concepção ocidental. O jogo enunciativo desdobra-se em várias vozes e estilos.
Num texto híbrido, o autor apropria-se de uma pluralidade de discursos sobre o corpo para captar traços de uma corporalidade ameríndia, buscando nela os princípios dessa socialidade e política. A esse princípio denomina sociedades contra o Estado.
Tomada como categoria nativa, a corporalidade abre o texto a uma dimensão experimental sem precedentes. A tortura modula a intensidade que torna os corpos maleáveis ao modelamento.
O corpo, o rito. O princípio do texto está explícito:
“É, sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino. Em qual segredo inicia o rito que, por um momento, toma completa posse do corpo do iniciado? Proximidade, cumplicidade do corpo e do segredo, do corpo e da verdade revelada pela iniciação: o reconhecimento disso leva a precisar a interrogação. Por que é necessário que o corpo individual seja o ponto de encontro do ethos tribal por que o segredo só pode ser comunicado mediante a operação social do rito sobre o corpo dos jovens? O corpo mediatiza a aquisição de um saber, e esse saber é inscrito no corpo. Natureza desse saber transmitido pelo rito, função do corpo no desenrolar do rito: dupla questão em que se resolve o problema do sentido da iniciação.” (1978:125)

É a imanência que distingue esse saber e reconfigura sua apropriação etnológica. O recurso enunciativo não se sustenta numa palavra transcendente, e sim serve de índice de abertura do corpo à ritualidade, instalando-se num regime de trocas simbólicas com os demais habitantes do cosmos, igualmente sujeitos, que opera por interconstituições somáticas. A dor configura o estado de intensidade redefinidor das afecções do corpo incorporado pela socialidade.
Ao aplicá-lo à corporalidade imanente à ritualidade propõe o princípio das sociedades contra Estado ou anti-institucionais. Tal princípio define-se, via ritualidade, pela constituição do corpo como locus de socialidade com a inscrição na pele da marca da cultura, que não é desdobrada institucionalmente na normatização, na escrita, no logos.
A ritualidade projeta-se como prática definidora nesse complexo de produção de conhecimento. Sustenta-se aqui que tal operação constitui o eixo da aprendizagem guarani, assim como, por extensão, de sua epistemologia.
Articulado à corporalidade, o jogo de agenciamentos enunciativos próprios aos cantos xamanísticos tem conduzido o pensamento da etnologia brasileira ao perspectivismo como fundamento epistemológico das cosmologias ameríndias.
Visto que tais sociedades nos proporcionam uma relativização do nosso desdobramento objetivo  sem fé, sem lei, sem rei, mas também sem história, sem escrita, sem mercado, segundo esse critério da falta etnocêntrico  o corpo emerge como lugar da reciprocidade, num encaminhamento distinto ao do biopoder.


“Seu erro é pensar no poder do jaguar em termos de capacidade de imaginar coisas. Ele não pode pensar. Ele apenas sabe.”
(Castañeda, 2000:202)

Que o debate tem alcance filosófico e o pensamento Guarani pode ser tomado segundo esses princípios, isso já se deixava entrever em O arco e o cesto de 1966 . E, mais ainda, que se insere a partir da matriz trágica da filosofia de Nietzsche, isto já está explícito nos conceitos e na abordagem elaborada por Clastres a partir Do Um sem o Múltiplo.
O tema da unidade e da multiplicidade no pensamento Guarani que conduz problematização do princípio de identidade já articula uma série complexa de questões que vinha ganhando corpo na escritura do autor e são elaboradas apontando uma redefinição  ou revolução  epistemológica via etnologia.
Essa articulação filosofia-etnologia encontra ressonância em Deleuze-Guattari (Anti-Édipo e Mil Platôs), iniciando um profícuo debate epistemológico.
O autor elabora, então, os princípios que já haviam sido incorporados no estilo de sua escritura: recorte, foco narrativo, descrição, regime enunciativo etc. Ao passar a tema do debate, seu caráter epistemológico evidencia-se. A filosofia é convocada para dar conta dessas apropriações que invadiram a etnologia, influenciando-a num hibridismo sui generis. O princípio de identidade é problematizado para dar conta do regime enunciativo de agenciamentos, o elemento que marca estilisticamente sua co-autoria com os Guarani pelo menos desde Os profetas da selva, de 1970.
No entanto, confirmando que o tema já está latente na escritura do texto de 1966, o autor aborda a mitologia num texto bem humorado datado de 1967: De que riem os índios? Abordando, numa transposição primorosa de dois mitos hilários tematizando o xamanismo Chulupi, povo do Chaco paraguaio, conclui em sua exegese etnográfica:

“Diversas tribos dessa área têm, já vimos, a convicção de que os bons xamãs são capazes de subir à morada do Sol, o que lhes permite ao mesmo tempo demonstrar seu talento e enriquecer seu saber, questionando o astro onisciente. Mas existe para esses índios um outro critério do poder (e da maldade) dos melhores feiticeiros; é que estes podem transformar-se em jaguares. A aproximação de nossos dois mitos deixa doravante de ser arbitrária, e a relação até agora exterior entre jaguares e xamãs é substituída por uma identidade, já que, sob certo ponto de vista, os xamãs são jaguares. Nossa demonstração estaria completa se chegássemos a estabelecer a recíproca desta proposição: serão os jaguares xamãs?”
(1978:104)

O autor inicia o texto referindo-se à autonomia atribuída pela etnologia ao pensamento indígena, instalando-o em dimensão epistemológica. Em tom irônico, convida-nos a trafegar pela gai savoir dos índios e rir-se da antropologia, assim como eles, em suas histórias, riem dos míticos xamãs que, ao invés de tabaco, fumavam seus próprios excrementos, e, em vez de curar seus pacientes, procuravam devorá-los. Afirma por fim que, identificados os termos, um não pode ser compreendido senão em referência ao outro.
O problema da identidade desdobra-se enviando à dinâmica de perspectivas que entra em jogo: ponto de vista do etnólogo, ponto de vista dos Chulupi, ponto de vista dos jaguares.
Essa passagem embasa aqui o alcance epistemológico das proposições do texto de 1972-3. O debate epistemológico permite ao autor um contraponto para o embasamento filosófico de sua produção com a apropriação desse recurso fundamental do pensamento indígena.
O alinhamento da etnologia ao pensamento indígena é operado a partir desse recurso, na proposição que ouve dos lábios inspirados do karai: “As coisas em sua totalidade são uma: e para nós que não desejamos isso, elas são más.”
Considerado ontologicamente, o autor remete ao que nesse pensamento nos é estranho, a um estranho acionamento do princípio de identidade que conduz ao fundamento do universo religioso guarani.

“Talvez enxerguemos mais claro sobre isso agora. A terra imperfeita, onde ‘as coisas em sua totalidade são uma’, é o reino do incompleto e o espaço do finito, é o campo de aplicação rigorosa do princípio de identidade. Pois dizer que A = A, que isto é isto, e que um homem é um homem, é declarar ao mesmo tempo que A não é não-A, que isto não é aquilo, e que os homens não são deuses. Nomear a unidade das coisas, nomear as coisas segundo sua unidade, é também assinalar-lhes o limite, o finito, o incompleto. É descobrir tragicamente que esse poder de designar o mundo e de determinar seus seres  isto é isto, e não outra coisa, os guarani são homens e não outra coisa  não é senão a irrisão do verdadeiro poder, do poder secreto que pode silenciosamente enunciar que isto é isto, e ao mesmo tempo aquilo, que os guaranis são homens, e ao mesmo tempo deuses. Descoberta trágica, pois nós não desejamos isso, nós que sabemos enganadora a nossa linguagem, nós que nunca poupamos esforços para alcançar a pátria da verdadeira linguagem, a morada incorruptível dos deuses, a Terra sem Mal, onde nada do que existe pode ser dito Um.” (1978:121)

Ao articular esses dois elementos do pensamento Guarani, agenciamento via regime enunciativo e estranho acionamento do princípio de identidade, envia a uma inversão radical daquilo foi considerado o pessimismo Guarani. Essa inversão do pessimismo aciona o princípio da imanência que pauta a ritualidade, prática simbólica centrada na corporalidade, como principal regime de constituição de saberes dessas sociedades.
Assentado na imanência do corpo  corpo-humano, corpo da Terra  abre-se um regime de multiplicidades caracterizando sua concepção sociomórfica do cosmos.
A partir do duplo, Uno e Múltiplo são redimensionados e podem retornar . O duplo refere-se à propriedade de abertura constitutiva do humano, que se constitui do próprio vínculo Unidade/Multiplicidade, e que remete a essa propriedade da imanência.
Instaura-se no corpo o acionamento desse princípio de identidade. É isso que o alinha à interconstituição predador/presa como operador central desse paradigma de alteridade que é o xamanismo, o qual postula um universo comandado pela agência, capacidade dialógica e transcodificadora.
Em Clastres, o corpo não se restringe à esfera dos valores sociais, funciona como a ponte entre o indivíduo e o cosmos, ou seja, o indivíduo interconstitui-se com o cosmos via substâncias e segundo um regime de intensidades. No caso, focaliza-se o regime de intensidades, em torno do qual a substâncias estão sendo consideradas.
Articulado ao estranho acionamento do princípio de identidade, caracterizado por Clastres [1973] como fundamento do universo religioso guarani, segundo o qual isto é isto, e ao mesmo tempo aquilo, ou seja, os xamãs são xamãs, mas nem por isso deixam de ser jaguares, o corpo encaminha esse trágico sistema de crueldade, essa assinatura feita de sangue.
Para se adentrar o regime de intensidades aqui referido deve-se redefinir o corpo de susbstrato estanque, medida de um sujeito essencializado e estável, em hecceidade singularizante. O corpo é o lugar onde se operam as metamorfoses ou devires, sendo a corporalidade o próprio movimento dos afecções (estados de corpo) ou afectos (variações de potência). Esse campo de forças norteado pela figura do corpo define o fenômeno eterno que desnorteia a consciência; a partir dessa vontade nietzscheana, afirma-se que em toda parte onde se reconhecem ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade.

devir: da pedra no caminho ao caminho das pedras

“É a figura do tigre que expõe a verdade da manducação.” (Bataille,1987:76)

“Todo el mundo sabe que cuando los Eleatas negaron el movimiento, Diógenes les salió al paso como contrincante. Digo que ‘les salió al paso’, pues en realidad Diógenes no pronunció ni una sola palabra en contra de ellos, sino que se contentó con dar unos paseos por delante de sus mismas narices, con lo que dejaba suficientemente en claro que los había refutado.”
(Kierkegaard, La repeticion:129)

Parte-se do princípio de que a corporalidade se opera, via jeroky, canto-dança, por um regime de intensidades na ritualidade guarani. É através dele que os corpos se metamorfoseiam. Esse devir que relaciona os corpos substancialmente, que os impulsiona no corpo a corpo de um jogo de forças por vezes violento e mortal, conforme se busca demonstrar ao longo deste trabalho, teve início com a apropriação do recurso de agência das palavras dos deuses, as belas palavras, acionadas agora no circuito dos corpos, pelos intercessores dos xamãs: “Todo xamã é senhor de um tal espírito-assistente animal: trata-se na maioria das vezes de pequenos pássaros ou de serpentes” (Clastres, [1967]1978:102)

Essa concepção, que encaminhará o pensamento ao qual está associado este trabalho, tem como precursor o etnólogo Curt Nimuendaju. O ensaio Nimuendaju e os Guarani, de Viveiros de Castro se apropria da série de recursos tangenciados pelo autor e reapropriados no corpo deste trabalho. Sobre o estranho princípio de identidade acionado por Clastres, Nimuendaju já o formulara como linha de fuga à crença, imputada ao pensamento indígena por nossos métodos de verificação.

“O caso é naturalmente mais grave quando alguém possui o acyiguá de um animal predador. Os aguerridos Kaingýgn, inimigos dos Guarani, possuem invariavelmente um acyiguá de jaguar ou de gato do mato. O acyiguá de predador predomina totalmente sobre o ayvucué; por isso, os Kaingýgn não são ‘como’ jaguares ou comparáveis a jaguares: não, eles são intrinsecamente jaguares, apenas em forma humana.” (Nimuendaju, 1987:34)

Esta potente afirmação, se poderia dizer descoberta ou invenção, do etnólogo alemão, feita em 1914, ecoa ainda hoje atravessando as obras aqui percorridas, bem como esta mesmo . Ela detona o devir como princípio central da mística guarani, assumida aqui como dispositivo de compreensão.
Esse devir que, via Clastres, remonta à aurora do pensamento ocidental, aciona a série de recursos que se apropria então. Na obra de Viveiros de Castro apropria-se do perspectivismo ameríndio, conceito matriz desse idioma simbólico em que consiste a corporalidade. (Viveiros, 1996, 2002; Seeger et alli, 1987:12, 20)
O esforço aqui empreendido constitui-se da busca de apropriar a concepção segundo a qual as perspectivas situam-se nos corpos. “Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo.” (1996:128)

A seleção dos animais considerados pelo perspectivismo incide sobre aqueles que desempenham papel simbólico e prático de destaque. Os grandes predadores marcam a relação central do perspectivismo: as relações de predação.

“Os animais vêem da mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologia  quanto a isso os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpo , mas aos afetos, afeccções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário... A morfologia, a forma visível dos corpos, é um signo poderoso dessas diferenças de afecção, embora possa ser enganadora, pois uma aparência de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar.” (1996:128)

Esse devir processa o corpo, define a corporalidade como idioma simbólico. Situando os processos somáticos resultantes de tais embates de força, mais que a conceitos, remete-se a perceptos . Essa concepção, já referida no texto de 1987(:35, que remete à dissertação do autor (1977)), detona a redefinição do que pode vir a ser um corpo. As relações, definidas enquanto afetos (affectio: efeito), pensando afecções como estados de corpo e afectos como variação de potência, definem os corpos enquanto processos de interconstituição por trocas simbólicas, as quais podem ser violentas e, intensificando-se às linhas de abolição, mortais.
Por fim, a referência ao silencioso mundo mortos. Em contraste com o culto dos ancestrais (Viveiros de Castro, 1996:134), o que a etnologia brasileira transcreve é uma ruptura entre vivos e mortos fundada no corpo, em que estes se afiguram numa alteridade corporal (afins ou inimigos).
Hélène Clastres, em Os mortos e os outros de Carneiro da Cunha, afirma: “A morte interrompe de tal forma as trocas que o grupo não pode senão compreender, sob a forma da mais radical hostilidade, aquele que assim lhe escapa”. E completa a autora: “Assim, os Ache Kwera qualificam como onça  o pior dos inimigos  aquele a quem estão inumando.” (1979:143)


“Eliminamos a consciência universal que fixa um fim e os meios: foi o que precisamente nos forneceu um grande alívio”
(Nietzsche:253)

A definição de corpo em Viveiros de Castro resulta de sua associação com Deleuze-Guattari. Esses autores processam o corpo por zonas de intensidade ou de vizinhança, por devires.

“Nenhuma dessas duas figuras de analogia convém ao devir, nem a imitação de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui, ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. Esse princípio de proximidade ou de aproximação é inteiramente particular, e não reintroduz analogia alguma. Ele indica o mais rigorosamente possível uma zona de vizinhança ou de co-presença de uma partícula, o movimento que toma toda partícula quando entra nessa zona.” (1997:64)

Essa definição de devir é constitutiva da corporalidade aqui definida. Nesses estudos do devir, o plano de imanência e seu princípio de causalidade projetam-se ao propósito deste trabalho: esboçar um processo de criação em que se dê a perceber seu próprio princípio de composição.
Tal princípio de composição resulta de um processo de subjetivação por hecceidades que se constitui no limiar da percepção. Ver tão-somente os movimentos. Os movimentos, como os devires e afectos, estão fora do limiar de percepção. Ouvir equivale a dissolver-se na bruma, nessas linhas que se desprendem dos dançadores, tornar-se em puro movimento.

“Se o movimento é imperceptível por natureza, é sempre em relação a um limiar qualquer de percepção, ao qual é próprio ser relativo, desempenhar assim o papel de uma mediação, num plano que opera a distribuição dos limiares e do percebido, que dá a sujeitos perceptivos formas a serem percebidas: ora é esse plano de organização e de desenvolvimento, plano de transcendência que dá a perceber sem poder ser percebido. Mas, no outro plano, de imanência ou de consistência, é o próprio princípio de composição que deve ser percebido, que não pode senão ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá.” (1997:75)

Aqui se deixa entrever o plano de imanência. Uma percepção ou uma consciência universal equivale ao definido como plano de transcendência, visto que oculta seu princípio de composição enquanto dá a perceber.
Essa percepção estabelecida e sustentada por valores que se ocultam por um deus ex machina, define o sujeito essencializado, identificado numa interioridade estanque. Essa consciência estabelece seus padrões como valores, é o que Deleuze define, a partir de Nietzsche e Spinoza, como doutrina do juízo, que envia à consciência de uma dívida com a divindade; em contraste com a proposta que define este trabalho a partir do sistema da crueldade, o qual se pauta na corporalidade, nos afectos que constituem os corpos como embates de força.
Para quem ainda se pergunta sobre a pertinência de tal encaminhamento, pergunta não de todo inválida, responde-se que a partir da convivência junto aos Guarani de tribos urbanas liberou-nos para pensar de fato em possibilidades de criação de modos de existência, a experiência estética que Nietzsche apropria via Heráclito. Vivenciei como a convivência junto aos Guarani nos modificou enquanto abria possibilidades de experiência. A maneira de cada um, ninguém ficou ileso. O toque guarani nos sensibilizou e colocou em contato com uma forte corrente que não para de correr e impulsionar aqueles que seguem vivos e férteis.

Ywy mara-ey
“Não sendo natural, é inevitável que o considerem sobrenatural; e então que pode ele ser, senão a presença nele de Deus ou do Diabo? (...) Mas por que motivo nosso Salvador procedeu, para curá-los, como se estivessem possessos e não como se estivessem loucos? Ao que não posso dar outro tipo de resposta, senão aquela que é dada aos que de maneira semelhante usam as Escrituras contra a crença no movimento da Terra. (...) Quanto ao fato de nosso Salvador falar à doença como se falasse a uma pessoa, este é o procedimento habitual daqueles que curam pela palavra (...) Todavia isso não prova que uma febre seja um diabo.” (Hobbes, Leviatã, 1979:49)

O esquema de interpretação da terra sem males que a considera como instância transcendente conduz alguns autores, como Schaden ou Meliá por exemplo, a interpretar a mística Guarani na chave de uma epistemologia fundada nos preceitos morais e idealistas da metafísica cristã. Essa tradição, além de se deixar atravessar por um forte logocentrismo, pauta-se na concepção de uma cultura Guarani ideal ou pura. A partir dessa concepção, simula por vezes ela própria, uma melancolia do discurso Guarani, marcando sua interposição etnocêntrica. Pela hipótese de um platonismo característico da teologia guarani, ainda que como recurso explicativo ocasional, Meliá parece perverter a inversão trágica do pessimismo (atribuído aos) guarani proposta por Viveiros de Castro. Ao reafirmar, nas próprias palavras do autor, a imanência do divino no humano (1989:334) deforma a imanência ao contê-la no transcendente.
No entanto, a esterilidade a que conduz tal discurso desolador serve para inverter-se num princípio de fertilidade a partir do qual a vida é impulsionada a partir de um estado trágico de afirmação suprema que não exclui nem mesmo a suprema dor.
Parece ser essa a transposição sugerida por Viveiros de Castro nesse ensaio em que opera a apropriação dessa melancolia a partir do princípio trágico, que remete àquele com que Nietzsche apropria-se do pessimismo grego como chave para abrir a dimensão de eterno retorno seletivo da vontade de potência.

“Se Nimuendaju estava certo em seu diagnóstico sobre a melancolia e o desespero inerentes ao pensamento Guarani, este é um problema em aberto; talvez ele, e outros que o seguiram, tenham confundido o que nos parece ser uma concepção trágica do mundo com seu simulacro e contrafação, o pessimismo; talvez, depois de a ter magistralmente analisado, não tenha Nimuendaju percebido que a cataclismologia Guarani tem atrás de si uma esperança muito sutil de esperança e desânimo, paixão e ação, e que sua aparência negadora oculta uma poderosa força afirmativa: em meio à sua miséria, os homens são deuses.” (1987:xxiv)

O autor sugere uma confusão dos etnólogos entre a cataclismologia guarani e seu simulacro, o pessimismo. Confusão essa que só poderia ser desfeita com a devida distinção epistemológica que libera o pensamento guarani dos pressupostos da tradição do pensamento ocidental, ou melhor, libera a etnologia a redimensionar-se a partir das categorias, ou conceitos, do pensamento guarani.
Ao conceber o trágico como aceitação da vida para além dos limites da consciência utilitária, de uma perspectiva que concebe o jogo de forças em meio ao qual se constitui o homem, o filósofo pulveriza essa dimensão ideal que dá a tônica à vontade de verdade e instaura seu axis a partir do plano transcendente.
Operando com o eixo movente das dimensões perceptivas que pautam a ritualidade guarani e, daí, redimensionam a interação etnológica, encaminha-se um esquema que conduz às micropercepções com que opera o devir-imperceptível da ritualidade. Encaminha-se à lógica da sublimação da corporalidade, com a qual Viveiros de Castro reconduz a cataclismologia guarani de Nimuendaju.
Uno factu equivale aqui a traçar o plano imanente que condiciona o exercício dessa causalidade perceptiva molecular.
O que se quer dizer com isso? Que não se trata de buscar no inconsciente a percepção do imperceptível, de investir ainda mais nessa onipotência racional para colonização de novas províncias. Tais instâncias só se justificam como pólos extremos. O risco de reificá-los é pertinente também aqui. No entanto, o complexo de aprendizagem instaurado na ritualidade centrada nos fluxos perceptivos que conduzem à abertura do corpo à socialidade via refinamento dos sentidos, desloca o eixo racional que tende à fixação nessa polaridade.
Deleuze afirma (cf. epígrafe inicial) que o saber constitui-se nesse limite . A ritualidade não permitiria traçar um plano de imanência para o exercício de uma causalidade perceptiva molecular? Tal é o problema perseguido ao longo deste percurso. Viveiros de Castro conclui:
“Seres do devir, para os Guarani a destruição do mundo não é um termo, mas uma linha de fuga que os arrasta para um além sempre adiado  isto é o presente. Melancolia, ou orgulho, deste povo imperceptível?” (Nimuendajú, 1987:xxxiii)